segunda-feira, 27 de janeiro de 2020

O crime da Vale em Brumadinho: metáfora de um sistema minerário predatório


Dom Vicente Ferreira* - Bispo auxiliar da Arquidiocese de Belo Horizonte, em seu artigo reflete sobre a realidade de Brumadinho, a partir do crime da Vale,  e afirma: "O que impera, aqui, de fato, é o interesse de uma multinacional e de seus acionistas, mesmo que para isso seja necessário burlar leis, comprar o Estado, usar maquiagens nas mídias." 

Segue o artigo,

“Tudo está interligado. Por isso, exige-se uma preocupação pelo meio ambiente, unida ao amor sincero pelos seres humanos e a um compromisso constante com os problemas da sociedade.” (Papa Francisco, Laudato Sì, n. 91)
A carta Encíclica Laudato Sì, do Papa Francisco, é um corajoso e bem fundamentado documento sobre ecologia integral. A partir de uma importante leitura das formas insustentáveis de exploração do meio ambiente, o texto propõe, à luz da fé cristã, uma conversão ecológica. Dramas agudos como o aquecimento global, a devastação da biodiversidade, a poluição do ar e das águas, impõem sobre o planeta violentos cenários de destruição e, sobre os pobres, caminhos sem esperança de sobrevivência. Com tudo isso, crimes como os de Mariana e de Brumadinho são fatos isolados, acidentes de percurso, ou revelam uma forma global de extrativismo que recolhe o lucro e socializa a morte? Basta, apressadamente, pensar em medidas de reparação para cada caso, ou buscar um novo pacto global pela Casa Comum?
Desde o dia 25 de janeiro de 2019, data do crime da Vale com o rompimento da Barragem da Mina Córrego do Feijão, testemunhamos um luto e uma luta que fazem pensar elementos de respostas a essas perguntas. Primeiramente, o município é um caso concreto da minério-dependência. Mesmo com a trágica situação pós-crime, defender a narrativa dos atingidos é uma tarefa árdua, o que nos fez cunhar a expressão 25 é todo dia. A mineração que matou, negocia o que será reparado. Isso denuncia o estilo de um extrativismo colonialista, disfarçado em proposta de desenvolvimento. O que impera, aqui, de fato, é o interesse de uma multinacional e de seus acionistas, mesmo que para isso seja necessário burlar leis, comprar o Estado, usar maquiagens nas mídias. Em segundo lugar, a repetição de uma engenharia criminosa, faz pensar que o rompimento de barragens é, infelizmente, um caso previsto; parte de um processo minerário. As placas com rotas de fuga mostram o cinismo da busca do lucro acima da vida. Trata-se, portanto, de crimes anunciados, realizados e prolongados. A grande devastação socioambiental serve, também, para que a mineração continue ocupando o território com ares de domínio e poder. Em terceiro lugar, pensar em caminhos alternativos esbarra em resistências fortes de um modelo que dominou até mesmo a autonomia do pensar. Não é tarefa fácil problematizar a mineração em territórios como Brumadinho e, o retorno dos trabalhos da Mineradora, em Mariana, é prova real disso.
Diante desses pontos, há um grande trabalho de resistência protagonizado por algumas forças da Igreja local. Movimentos que levam a sério o pedido do Papa Francisco para que sejamos uma Igreja em saída. A articulação das comunidades ao longo de um ano pós-crime, possibilitou a formação de um coletivo dos atingidos. Nele, há um trabalho que une denúncia e anúncio, que liga espiritualidade e grito pela justiça. Um espaço de afeto, humano e ecológico, que o capital não domina. Dar voz às vítimas também não se faz sem a memória das 272 mortes, incluindo as que ainda não foram encontradas. E, como tudo está interligado nessa Casa Comum, fica claro que falar de crise ecológica é reconhecer que o horizonte da ética, do que o ser humano elege como seu novo deus, o dinheiro, não são coisas separadas uma da outra. Voltar o coração para a vocação central de cuidadores do planeta, deve fazer as comunidades locais e internacionais pensarem em limites e possibilidades da relação do homem com o universo.
Os caminhos alternativos passam pela proposta de uma conversão ecológica que deve assumir aspectos individuais e coletivos. Vencer a genética consumista da contemporaneidade se dará pela busca de uma vida mais simples, assumindo posturas que estão na contramão da cultura do descarte. Para isso, a valorização da agricultura familiar, das pequenas empresas, dos artesanatos, das tradições das comunidades quilombolas, do ecoturismo não são propostas inalcançáveis. Pelo contrário, elas já existem e sustentam a defesa de uma geografia que não possui somente minério, mas sobretudo água, tradições, religiosidade, mantidas por tantos atores locais. Vale lembrar, que tais atores, muitas vezes, são criminalizados pela força de sua resistência e nem sempre participam dos circuitos oficiais da sociedade ou da própria dinâmica eclesial. Desse modo, é louvável a primeira romaria da Arquidiocese de Belo Horizonte pela Ecologia Integral a Brumadinho, dia 25 de janeiro de 2020, como grito e súplica de tantos que sonham por um mundo novo.
Enfim, fica claro que a Igreja não possui um partido político, mas, sem dúvida, é uma voz política porque denuncia a exclusão e propõe a construção de uma sociedade de paz, que não será alcançada sem justiça. Seu partido é o Evangelho, que não pode ser rasgado em nome de nenhum interesse que coloque o lucro acima de tudo e a lama em cima de todos. Se, num primeiro momento, fomos firmes na acolhida solidária, hoje, é mais do que justo, que debatamos também modelos políticos de condução de nossa região que não estejam atrelados ao monopólio das mineradoras. Nesse caso, não basta a caridade assistencial. De algum modo, também nós cristãos temos que sanar a esquizofrenia que há entre fé e vida, entre crer com as palavras e não agir para mudar estruturas econômicas perversas. O caminho a percorrer é longo, mas a esperança é grande. É bem provável que estejamos participando de uma nova revolução e ela é socioambiental. Até quando? Até sempre!
*Dom Vicente Ferreira - Bispo auxiliar da Arquidiocese de Belo Horizonte, responsável por Brumadinho e região
FONTE: IHU


sábado, 25 de janeiro de 2020

Brumadinho: Um ano de Fé, Resistência e Dignidade!!!

Bíblia resgatada da lama em Brumadinho
"Eis o que diz o Senhor: “Ouve-se em Ramá uma voz, lamentos e amargos soluços. É Raquel que chora os filhos, recusando ser consolada, porque já não existem” (Jeremias 31,15)

Há um ano, a organização criminosa Vale soterrou vidas, matando 272 pessoas, das quais 11 ainda não forma resgatadas da lama, em Brumadinho. Se tornava reincidente no crime, lembremos dos mortos de Mariana.

Esse crime revela, na realidade, não o extraordinário, mas infelizmente as características do modelo minerário, bem como uma realidade de desafios relacionados ao acesso à justiça, a questão da impunidade e a falta de responsabilidade das empresas e do Estado brasileiro.

A Igreja, vive há um ano a reverência aos mortos e a dor imposta em Brumadinho, no com o mesmo espírito que nos revela o profeta Jeremias: "Eis o que diz o Senhor: “Ouve-se em Ramá uma voz, lamentos e amargos soluços. É Raquel que chora os filhos, recusando ser consolada, porque já não existem” (Jeremias 31,15)

Desde os primeiros dias após o crime da Vale, em Brumadinho, a Arquidiocese de Belo Horizonte assumiu três atitudes, formas de aproximação, que se  transforam em base para uma ação pastoral junto às pessoas. O rompimento ocorreu numa sexta feira, dia 25 de janeiro e no dia seguinte, no sábado à noite, a comunidade de Brumadinho junto  aos bispos da Arquidiocese de Belo Horizonte, padres e seminaristas, celebraram uma missa em meio a dor e a incerteza de tantos mortos. Das homílias, eu resgato o que passou a serem realmente as três formas de aproximação e ação pastoral. A primeira, vem da homilia de Dom Vicente Ferreira, que falou da compaixão, de estar junto, chorar junto, viver e sentir junto. A paróquia se abriu como espaço de acolhida, o próprio Dom Vicente, responsável pelo Vicariato daquela região, se transferiu para morar em Brumadinho. A segunda, vem da homilia de Dom Joaquim Mol, ao  explicitar de forma clara, que o ocorrido, se trata de um homicídio coletivo e de um crime ambiental. O trabalho de compreender o que houve, de fortalecer uma narrativa consciente sobre a realidade da mineração, do papel do Estado e de não deixar se enganar nos processos de negociação, é parte do trabalho pastoral desenvolvido desde os primeiros dias, quando se organizou a primeira equipe pastoral. A terceira dimensão, vem da homilia de Dom Walmor Oliveira, que afirmou o compromisso de lutar para se construir um novo modelo de desenvolvimento. Não se pode continuar vivendo num modelo baseado no lucro a todo custo e para poucos, de desastre em desastre.  Um trabalho pastoral com dimensão política e social, está se construindo aos poucos.  O que ocorreu em Mariana e Brumadinho e o que vai ocorrer, com a permissão de mineração na serra da Piedade, apontam para um desafio constate em relação à mineração.

A primeira aproximação pastoral, no campo da presença, da compaixão, do estar junto e até mesmo no silêncio, encontra uma orientação na Carta Apóstolica Misericordia Misera, onde o papa Francisco nos exorta: “[...]Quanta amargura perante a morte das pessoas queridas! E, todavia, Deus nunca está longe quando se vivem estes dramas. Uma palavra que anima, um abraço que te faz sentir compreendido, uma carícia que deixa perceber o amor, uma oração que permite ser mais forte... são todas expressões da proximidade de Deus através da consolação oferecida pelos irmãos. Às vezes, poderá ser de grande ajuda também o silêncio; porque em certas ocasiões não há palavras para responder às perguntas de quem sofre. Mas, à falta da palavra, pode suprir a compaixão de quem está presente, próximo, ama e estende a mão. Não é verdade que o silêncio seja um ato de rendição; pelo contrário, é um momento de força e de amor. O próprio silêncio pertence à nossa linguagem de consolação, porque se transforma num gesto concreto de partilha e participação no sofrimento do irmão”. (MM 13)

Essa aproximação pastoral da compaixão, encontra na compaixão de Jesus, sua espiritualidade, expressão e força pastoral. Uma compaixão que não nos paralisa, mas nos abre para os outros, que é corajosa, e nos lança para a organização e a missão de promover a vida (Mc 6.30-56).  Bem nos fala Papa Francisco, da compaixão de Jesus, em sua Exortação Apostólica sobre o chamado à santidade no mundo atual, Gaudete et Exultate: “Olhemos para Jesus! A sua entranhada compaixão não era algo que O ensimesmava, não era uma compaixão paralisadora, tímida ou envergonhada, como sucede muitas vezes conosco. Era exatamente o contrário: era uma compaixão que O impelia fortemente a sair de Si mesmo a fim de anunciar, mandar em missão, enviar a curar e libertar. Reconheçamos a nossa fragilidade, mas deixemos que Jesus a tome nas suas mãos e nos lance para a missão. Somos frágeis, mas portadores dum tesouro que nos faz grandes e pode tornar melhores e mais felizes aqueles que o recebem. A ousadia e a coragem apostólica são constitutivas da missão”. (GE 131)

A partir da presença e compaixão, gesto concreto de partilha, que escuta, que organiza solidariedade e se constrói uma  Igreja em saída, em direção ao outro, ao diálogo que se abre para uma pastoral que leve à uma compreensão maior, de  que aquilo que está em jogo e à necessidade de construção de novas relações na sociedade, e para com o planeta. O Papa Francisco na Encíclica Laudato Si nos diz que tudo está "interligado", "inter-relacionado", que existe uma relação entre "a natureza e a sociedade que a habita" (LS 139). Ele partir de Francisco de Assis,  fala em "ecologia integral", e nos diz que em São Francisco "podemos ver como são inseparáveis a preocupação com a natureza, a justiça com os pobres, o compromisso com a sociedade e a paz interior "(LS 10). Ele também afirma: "Seu testemunho também nos mostra que uma ecologia integral requer abertura para categorias que transcendem a linguagem da matemática ou da biologia e nos conectam com a essência do humano" (LS 11). A ecologia integral parte da necessidade de: "pensar e discutir sobre as condições de vida e sobrevivência de uma sociedade, com honestidade para questionar modelos de desenvolvimento, produção e consumo". (LS 138), evitando "conhecimento fragmentado e isolado" (LS 138).

No capítulo 5, da Laudato Si, o Papa fala sobre "Algumas Linhas de Orientação e Ação", e fala sobre "política e economia no diálogo para a realização humana", nós temos: "Pensando no bem comum, hoje precisamos imperiosamente que a política e a economia, em diálogo, se coloquem decididamente ao serviço da vida, especialmente da vida humana”. (189). "Além disso, quando se fala de biodiversidade, no máximo pensa-se nela como um reservatório de recursos económicos que poderia ser explorado, mas não se considera seriamente o valor real das coisas, o seu significado para as pessoas e as culturas, os interesses e as necessidades dos pobres". (LS 190).

Um passo importante no campo pastoral, a partir das exigências de Brumadinho e visando uma ação pastoral mais ampla na questão da mineração, levou a CPT (Comissão Pastoral da Terra), CPP (Conselho Pastoral dos Pescadores), Cáritas Brasileira Regional Minas Gerais e CIMI (Conselho Indigenista Missionário), a constituir um nó da Rede Latino Americana Igrejas e Mineração, em Minas Gerais. Essas organizações já atuavam pastoralmente em várias regiões do estado de Minas Gerais, em áreas atingidas por mineração. A proposta agora é aprofundar a formação de agentes de pastoral, buscar uma trabalho integrado e com uma visão mais ampla e sistêmica da questão da mineração e da atuação do setor minerário.


Para a Rede Igrejas e Mineração, além da Laudato Si, do papa Francisco, a Carta Pastoral do Conselho Episcopal Latino-americano (CELAM), lançada em 2018,  sobre Ecologia Integral à luz da Encíclica Laudato Si - “Discípulos Missionários Guardiões da Casa Comum: Discernimento à luz da Encíclica Laudato Si’” – são dois documentos base para o trabalho ligado às questões da mineração. Essa Carta Pastoral do CELAM, trata dos  “principais desafios que a Ecologia Integral apresenta ao nosso continente, faremos uma pausa, em particular, para analisar o impacto das atividades extrativistas em nossa Casa Comum, especialmente aquelas relacionadas à mineração” (CP CELAM10) [...] queremos chamar a atenção para o fato de que o paradigma "reducionista" e "eficientista" (LS 104) da tecnocracia é absolutamente contrário a uma economia a serviço da vida humana e dos ecossistemas com sua grande biodiversidade. É necessário ter em mente que a causa da dramática crise ecológica são justamente as intervenções técnicas do ser humano em larga escala em nosso mundo. Na mineração, por exemplo, as novas tecnologias podem remover milhares de toneladas de terra em um tempo muito curto e, assim, gerar impactos imensos sobre o meio ambiente. Mas também existem riscos frequentes, como a ruptura das barragens de rejeitos (como é o caso do crime ambiental de Mariana, no Brasil). Os múltiplos derramamentos de óleo são uma triste manifestação de que nenhuma tecnologia é perfeita e que toda tecnologia, inclusive a mais desenvolvida, tem seus riscos de fracasso, muitas vezes irreversíveis. Por causa do grande poder que a tecnologia dá aos seres humanos, tem que discernir com muito cuidado e cautela, seu uso e seus múltiplos impactos” (CP CELAM93).

Em termos pastorais tudo está em construção, numa realidade e conjuntura que mudam a cada instante, abrindo novas exigências. Um caminho de aprendizagem e de comunhão com o povo e a natureza.

Frei Rodrigo de Castro Amédée Péret, ofm

quarta-feira, 1 de janeiro de 2020

Janeiro Marrom - Mês de alerta sobre a mineração e o crime da Vale em Brumadinho

O Janeiro Marrom é uma campanha para lembrar o crime da Vale em Brumadinho e alertar sobre a mineração que mata e assombra pessoas, destrói comunidades e biomas, vidas, fauna, flora, paisagem, qualidade do ar e solo, nascentes, aquíferos e rios e, de forma implacável, avança sobre territórios inviabilizando outras formas de viver, viola direitos e faz uso das mais diversas estratégias para deixar refém a população. Clique aqui para saber mais

À semelhança do Outubro Rosa e Novembro Azul, que hoje fazem parte do calendário anual de campanhas, se pretende que o Janeiro Marrom ganhe repercussão para também fazer parte. Foi idealizada por Guto em parceria com o Movimento pelas Serras e Águas de Minas (MovSAM) em memória das vidas ceifadas no rompimento da barragem de rejeitos da Mina Córrego do Feijão da Vale no dia 25/01/2019 e a proposta é ser realizada por um coletivo de organizações e movimentos.

Realização:
Abrace a Serra da Moeda
AFES
Associação Comunitária de Jangada
Comitê Popular dos Atingidos pela Mineração em Itabira e Região
Ecoavis
Fechos Eu Cuido
Fórum Permanente São Francisco
Gabinete de Crise - Sociedade Civil
MASCB
Movimento contra a barragem de Raposos
Movimento pela Preservação da Serra do Gandarela
REAJA
Rede Igreja e Mineração
Serra do Rola Moça Sempre Viva
Sinfrajupe
SOS Serra da Piedade
E outros coletivos, movimentos e organizações.
Saiba mais em: 
https://www.facebook.com/events/527974281127244/?event_time_id=527974287793910