quarta-feira, 29 de abril de 2020

As políticas econômicas e sociais irresponsáveis do Brasil colocam milhões de vidas em risco, dizem especialistas da ONU

GENEBRA (29 de abril de 2020) - Dois especialistas em direitos humanos da ONU disseram que o Brasil deveria abandonar imediatamente políticas de austeridade mal orientadas que estão colocando vidas em risco e aumentar os gastos para combater a desigualdade e a pobreza exacerbada pela pandemia da COVID-19.

“A epidemia da COVID-19 ampliou os impactos adversos de uma emenda constitucional de 2016 que limitou os gastos públicos no Brasil por 20 anos”, disse o especialista independente em direitos humanos e dívida externa, Juan Pablo Bohoslavsky, e o Relator Especial sobre pobreza extrema, Philip Alston. “Os efeitos são agora dramaticamente visíveis na crise atual”.

Os especialistas observaram que, por exemplo, apenas 10% dos municípios brasileiros possuem leitos de terapia intensiva e o Sistema Único de Saúde não tem nem a metade do número de leitos hospitalares recomendado pela Organização Mundial da Saúde.

“Os cortes de financiamento governamentais violaram os padrões internacionais de direitos humanos, inclusive na educação, moradia, alimentação, água e saneamento e igualdade de gênero”, afirmaram.

“O sistema de saúde enfraquecido está sobrecarregado e está colocando em risco dos direitos à vida e a saúde de milhões de brasileiros que estão seriamente em risco. Já é hora de revogar a Emenda Constitucional 95 e outras medidas de austeridade contrárias ao direito internacional dos direitos humanos”.

Especialistas em direitos humanos da ONU expressaram repetidamente a preocupação de que a política brasileira estava priorizando a economia sobre a vida das pessoas.

“Em 2018, pedimos ao Brasil que reconsiderasse seu programa de austeridade econômica e colocasse os direitos humanos no centro de suas políticas econômicas”, disseram. “Também expressamos preocupações específicas sobre os mais atingidos, particularmente mulheres e crianças vivendo em situação de pobreza, afrodescendentes, populações rurais e pessoas residindo em assentamentos informais “.

Os especialistas condenaram a política de colocar a “economia acima da vida”, apesar das recomendações de direitos humanos e da Organização Mundial da Saúde. “Economia para quem?”, perguntaram eles. “Não pode se permitir colocar em risco a saúde e a vida da população, inclusive dos trabalhadores da saúde, pelos interesses financeiros de uns poucos”, ressaltaram. “Quem será responsabilizado quando as pessoas morrerem por decisões políticas que vão contra a ciência e o aconselhamento médico especializado?”.

O Brasil tem feito vários esforços louváveis, eles observaram. “A renda básica emergencial, bem como a implementação das diretrizes de distanciamento social das autoridades subnacionais, são medidas de salvamento de vidas que são bem-vindas. No entanto, é preciso fazer mais”.

“Em uma recente declaração e carta aos governos e instituições financeiras internacionais, eu forneci recomendações econômicas, fiscais e tributarias concretas”, disse Bohoslavsky.

“A COVID-19 crise deve ser uma oportunidade para os Estados repensarem suas prioridades, por exemplo, introduzindo e melhorando os sistemas universais de saúde e proteção social, bem como implementando reformas tributárias progressivas, disseram os especialistas da ONU.

 “Os Estados de todo o mundo devem construir um futuro melhor para suas populações, e não valas comuns”.

A declaração dos especialistas foi endossada pelo Sr. Léo Heller, Relator Especial sobre os direitos humanos à água potável e saneamento; Sra. Hilal Elver, Relatora Especial sobre o direito à alimentação, Sra. Leilani Farha, Relatora Especial sobre o direito à moradia adequada, Sr. Dainius Pūras, Relatora Especial sobre o direito à saúde física e mental; Sra. Koumbou Boly Barry, Relatora Especial sobre o direito à educação, e o Grupo de Trabalho sobre discriminação contra mulheres e meninas: Meskerem Geset Techane (Presidente), Elizabeth Broderick (Vice-Presidente), Alda FacioIvana Radačić, e Melissa Upreti.

FIM

Senhor Juan Pablo Bohoslavsky (Argentina) foi nomeado especialista independente da ONU sobre os efeitos da dívida externa nos direitos humanos pelo Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas em 8 de maio de 2014.

Senhor Philip Alston (Austrália) assumiu suas funções como relator especial sobre pobreza extrema e direitos humanos em junho de 2014.

Os peritos independentes fazem parte do que se conhece como procedimentos especiais do Conselho de Direitos Humanos. Procedimentos Especiais, o maior corpo de especialistas independentes no sistema de direitos humanos das Nações Unidas, é o nome atribuído aos mecanismos de inquérito e monitoramento independentes do Conselho, que trabalha sobre situações específicas de cada país ou questões temáticas em todas as partes do mundo. Os especialistas dos Procedimentos Especiais trabalham a título voluntário; eles não são funcionários da ONU e não recebem um salário pelo seu trabalho. São independentes de qualquer governo ou organização e prestam serviços em caráter individual. 

ONU Direitos Humanos, página de país – Brasil

Para mais informações ou pedidos de imprensa, entre em contato com Bahram Ghazi (bghazi@ohchr.org) ou Frédérique Bourque (fbourque@ohchr.org)

Para consultas de mídia relacionadas com outros especialistas independendentes da ONU entre em contato com Xabier Celaya (+41 22 917 9445 / xcelaya@ohchr.org)


Epidemia revelou a alma do povo brasileiro

por Rudá Ricci*.

Uma das clarezas que estamos tendo com a pandemia é sobre o perfil de nossa gente, os traços da personalidade dos brasileiros. A pesquisa Datafolha indicando queda de apoio ao isolamento (de 52% para 44% ao longo de abril) nos diz muito.

Somos um povo ansioso, pouco afeto ao planejamento. Séculos de profunda desigualdade nos interditaram a possibilidade de planejarmos. De um lado, os mais pobres que não têm sobras para pensar no futuro. Restam o misticismo e a fé cega no futuro mágico.

Do outro lado, a porção nababesca do Brasil, que não precisa planejar porque tem um séquito à sua disposição e sempre um capetão a postos para fazer o jogo sujo. Afinal, para que pensar no país, se este território é todo seu?

E temos os "ascendentes". A ascensão social não é fato comum porque nossa mentalidade é estamental, vivemos em castas. Mas, há sempre aquela torcida para subirmos de casta. Neste caso, surge a torcida "ostentação". Gente que anda como siri, mas se apresenta como um "Beto Rockfeller". Parada para explicar para quem tem menos de 50 anos. Beto Rockfeller foi uma novela produzida pela Rede Tupi e exibida de 1968 até 1969, às 20 horas. Foi um tremendo sucesso. Beto era um vendedor de sapatos que inventa um avatar que se diz primo em terceiro grau dos Rockfeller. Agora eu sei o motivo de tanto sucesso desta novela da Tupi: Beto Rockefeller é o sonho dourado de tanta gente de classe média baixa ou pobre: poder viver a vida que nunca terá. Ao menos, alguns minutos de fartura.

Pois bem: somos ansiosos porque nunca conseguimos nos encarar no espelho. Preferimos olhar o futuro mágico. Esta necessidade de voltar "à normalidade" é a crença que todo esforço será recompensado. Mas, em casa, a sala e o banheiro mais ou menos acabam estampando o que sou.

Aliás, a tal "normalidade" nada mais é que um corredor, um local de passagem para o futuro mágico. Somos uma nação que foge para o futuro permanentemente. Ora, este é o ideário que está plantado nas favelas, segundo duas pesquisas já patrocinadas pela Central Única de Favelas. Os moradores de favela desconsideram qualquer governo e acham que qualquer melhora na sua vida se deve à Deus, à sua família (que sempre está ao seu lado) e ao seu próprio esforço. Fico imaginando o que significa a desgraça atual. Talvez, agora apareça o governo como algoz.

Então, ficamos nesta tentação da ostentação, o que nos leva à idolatria, outra marca dos brasileiros. A necessidade de ídolo é a de transferência da realização do sonho pessoal para alguém com poder que se torna íntimo na minha imaginação. A sua vitória é a minha. A sua morte é a minha. Uma encarnação. A idolatria chega a ser uma desforra: eu sou "próximo" (na imaginação) de tal ídolo e, portanto, minha opinião é correta. Daí a briga de vida ou morte entre aqueles que não ganham nada, mas defendem seus ídolos com sua alma. É a projeção de quem não confia em si mesmo.

Ora, se não confio em mim, melhor confiar no ídolo ou no futuro mágico. E, assim, vamos nos enterrando como nação. O andar de cima diz: "que morram muitos pobres para passar logo a epidemia". O andar de baixo afirma: "tenho corpo fechado e se não trabalhar, não ostento".

Exatamente quando chegamos a ultrapassar a China em número de mortes. Exatamente quando a morte chega nas periferias e no interior do país. Não interessa.

Afinal, somos bonitos por natureza. Que belê!

Rudá Guedes Ricci - Sociólogo, mestre em ciência política e doutor em ciências sociais pela Unicamp. Presidente do Instituto Cultiva. Da coordenação da Articulação Brasileira pela Economia de Francisco (ABEF) e do Pacto Educativo Global no Brasil. 

segunda-feira, 27 de abril de 2020

ENTRE PRAGMATISMOS, DESEJOS E CATARSE

por Eduardo Paiva.

Não sei se por conta de um traço sonhador que tenho, não sei se por ser ansioso ou por outros traços que kinda desconheço em mim; tenho muita desconfiança de pragmatismos e discursos que querem se apresentar como sendo equilibrados, quase isentos. 

Vejo tentativas de sínteses (a meu ver muitas vezes um pouco pretensiosas) que carregam muito numa linha quase asséptica. É verdade que essa performance discursiva tem seu charme e também não deve ser desconsiderada. 

O que quero salientar aqui, não é o discursador, mais o discurso e sua pretensa eficácia para o termo do tema que se pretende tratar. Não se fala sem emoção e muito menos sem pretensão. Não se elabora uma ideia sem um objetivo e não se formula um objetivo sem um contexto e uma história. 

Mais ainda, não se é afetado por um tema desconsiderando aspectos emocionais, psicológicos, enfim, os afetos. Politicamente vivemos momentos de catarse, de raivas, de alegrias, de tristezas, de ódios e de paixões. A crise atual não será resolvida desconsiderando ou passando por cima dessas emoções e sentimentos. 

A meu ver uma das maneiras de colaborar com a superação disso tudo é transitar no meio disso tudo. Ao contrário da assepsia, penso que teríamos de embebermo-nos das emoções e dos afetos; ao mesmo tempo aprimoramos mais nossa capacidade de observação e elaboração interna e externa, no intuito de viver e não negar nossos afetos para ampliar nossa capacidade de vida. 

Para além dos disfarces e engodos pseudo civilizados. A civilização como compromisso afetivo e busca a efetiva, para compartilhar e construir relações proveitosas para todos os seres e ambientes. 

Eduardo Paiva 

segunda-feira, 20 de abril de 2020

Franciscanos e Franciscanas em Defesa da Democracia

O Serviço Interfranciscano de Justiça, Paz e Ecologia, em nota, conclama os irmãos e irmãs em nossas comunidades, paróquias, bairros, cidades e territórios, para que permaneçam alertas e se unam na defesa da Democracia.

Leia a Nota

EM DEFESA DA DEMOCRACIA

O Serviço Interfranciscano de Justiça, Paz e Ecologia – SINFRAJUPE repudia as reiteradas atitudes do Presidente Jair Bolsonaro, que coloca em risco o estado de direito, bem como a saúde da população. No domingo dia 19 de abril, dia do Índio, em manifestação pública, o presidente atentou uma vez mais de forma criminosa contra a democracia brasileira. Em frente ao Quartel General do Exército, em Brasília, Bolsonaro discursou para seus seguidores, que aglomerados pediam o fechamento do Congresso Brasileiro, do Supremo Tribunal Federal e o retorno do “Ato Institucional número 5“ (em 1968, durante a ditadura militar, profundou o estado de exceção, fechando  o Congresso Nacional).

Enquanto os manifestantes pediam intervenção militar, Bolsonaro, de forma clara os apoiava, dizendo: "Não queremos negociar nada".

Desconsiderando a crise que enfrentamos devido ao COVID19, o presidente coloca em risco as instituições democráticas ameaça direitos fundamentais da população à vida e à saúde. Ele incentiva o fim do isolamento social e o retorno da população às suas atividades, desrespeitando a orientação das autoridades nacionais de saúde, governos estaduais e municipais,  e Organização Mundial da Saúde.

Como já reconheceu a Conferencia Nacional dos Bispos do Brasil e um conjunto de entidades democráticas, no documento Pacto pela Vida e pelo Brasil, vivemos “uma grave crise – sanitária, econômica, social e política – exigindo de todos (..) a busca de soluções conjuntas para o bem comum, particularmente dos mais pobres e vulneráveis. O momento que estamos enfrentando clama pela união de toda a sociedade brasileira (...) O desafio é imenso: a humanidade está sendo colocada à prova. A vida humana está em risco.

Bolsonaro cruzou a linha do tolerável em um regime democrático. Não podemos continuar lidando como se suas atitudes  fossem apenas piadas de mau gosto. Ele avança na direção de um golpe na democracia, aprofundando sua necropolítica Avança em sua agenda contra os direitos humanos e ambientais, em um projeto político econômico de terra arrasada e ultra neoliberal.

No espírito de Justiça, Paz e no cuidado pela vida e pelo planeta conclamamos a família franciscana, para estar atenta aos desdobramentos da situação. Neste momento de distanciamento social e de crescimento exponencial de contaminação e mortes causadas pela pandemia, vamos usar todos os nossos meios, a partir de nossas casas e conventos, nos comunicando com os irmãos e irmãs em nossas comunidades, paróquias, bairros, cidades e territórios, para que permaneçam alertas e se unam na defesa da Democracia.

Paz e Todo Bem!
São Paulo, 20 de abril de 2020

Serviço Interfranciscano de Justiça, Paz e Ecologia
Conferência da Família Franciscana do Brasil

sábado, 18 de abril de 2020

Em tempos de Pandemia, Ousar a Esperança - Laudato Si

Esperançar é a atitude a se tomar neste tempo de pandemia, escreve a antropóloga Moema Miranda, em artigo sob a ótica da Encíclica Laudato Si. Ela escreve que a pandemia do novo coronavirus é  "parte de um processo mais amplo, vinculado a atitude de grupos humanos em relação a outros humanos e ao planeta, ... intensificando os riscos de “caos sistêmico” ou o que os ambientalistas têm chamado de “tempestade perfeita”. Portanto o momento exige  "disputar o futuro, ampliar a solidariedade e ousar imaginar um mundo que não seja governado pela máquina de Manon, o “deus dinheiro”.

Moema* é assessora da Comissão Especial de Ecologia Integral e Mineração da CNBB e da Rede Eclesial Pan-Amazônica/REPAM-Brasil. O artigo foi publicado pelo Conselho Nacional do Laicato do Brasil, 15-04-2020

Eis o artigo.


Em Tempos de Pandemia Ousar a Esperança: 
Crise Socioambiental na ótica de Laudato Si


Estamos assistindo ao nascimento de um novo mundo. Nos primeiros anos do século XXI, esta poderia ter sido uma boa nova. Quando movimentos e organizações altermundialistas criaram o Fórum Social Mundial, em 2001, afirmaram: “outro mundo é possível”. Era, sem dúvida, um lema apocalíptico essencialmente utópico. Anunciava a confiança de que o fim do mundo dominado pela lógica ecocida do Mercado, subordinado às políticas neoliberais e a serviço do enriquecimento de poucos, poderia abrir o futuro para um mundo de mais justiça e equidade. “Um novo céu e uma nova terra” (Ap 20,1), como tinham sido anunciados e desejados por João, em Patnos, quase dois milênios antes.

Mas agora, a pandemia do novo coronavírus SARS-CoV2 (COVID-19), a primeira do século XXI, revela e anuncia a possibilidade de que o futuro pós-pandêmico seja, como disse recentemente o Papa Francisco, “trágico e doloroso”. Nestes tempos tão inéditos e traumatizantes, comemoramos 5 anos da publicação da Encíclica Laudato Si, um dos documentos mais importantes do pontificado de Francisco, com impactos para além da Igreja. Muitos dos aspectos socioambientais que a pandemia revela foram analisados em profundidade naquele documento profético. Da mesma forma, uma ótica, uma leitura do que está e estava em jogo nas grandes disputas planetárias foi elaborada com clareza. Finalmente, e mais importante, ao falar da Encíclica, muitas vezes, o Papa disse: “não deixem que nos roubem a esperança”. Isto é, não deixemos de acreditar e lutar para que surja um mundo melhor.

O futuro ainda não está decidido! Nós estamos, agora, em plena disputa. Somos parte dela! As forças de destruição detêm um poder imenso. As desigualdades brutais fazem com que seja uma guerra extremamente desleal e injusta. Por isto, com a coragem das mulheres aos pés da Cruz, temos que olhar com profundidade para os desafios e os riscos e ousar negar a ordem do capital. Com a gentileza e a coragem dos que caminham na noite escura, desobedecer ao poder da morte. Neste pequeno artigo, escrito em tempos de pandemia, com muita humildade, gostaria de compartilhar algumas propostas e perspectivas inspiradas na releitura desta Encíclica de Louvor ao Deus da Vida. Parto da seguinte questão: como atuar para que as expectativas apocalípticas, a “revolução cultural” (LS§114) de que nos falava a Laudato Si, venham a se tornar fonte de “vida e vida em abundância” (Jo 10,10) nos tempos pós-pandêmicos?

I. olhar...

Embora muitas pessoas e governos tenham sido surpreendidos pela rápida e letal expansão da contaminação por Covid 19, epidemiologistas alertavam para esta possibilidade há algumas décadas. Não foram ouvidos. Sua mensagem caiu na rede dos negacionistas, tão fortalecida nas últimas décadas, quando a “verdade” parece ter perdido o sentido de realidade. Aconteceu o mesmo com os abundantes e conclusivos Relatórios que indicam o aquecimento global, com efeitos irreversíveis: foram ignorados, desqualificados e/ou desdenhados por governos e por organismos multilaterais, cada vez mais despudoradamente dominados pelos interesses das grandes fortunas. Como agora sabemos, este pequeno vírus se alastra entre os humanos, partindo de outros animais e tornando-se uma pandemia em conseqüência da devastação ambiental e da extinção em massa de outras espécies animais que ocorre na Terra desde meados do século XX. Um planeta no qual uma pequena minoria de humanos, com base na “tecnociência” (LS §107), no poder bélico e em uma “concepção mágica do Mercado” (LS§190) busca incansavelmente o “desenvolvimento e progresso” entendidos como acúmulo ilimitado de bens. Uma forma de produção, acumulação, concentração e desperdício que caracterizam o que o Papa Francisco, define como uma “economia que mata” (http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/544477-qesta-economia-mataq-afirma-papa-francisco).

Assim, explica um escritor especializado em temas epidemiológicos: 

“Estas são doenças zoonóticas, ou seja, que passam de animais não humanos para os humanos. Elas são novas para humanos. Esta é uma das razões pelas quais geralmente são tão devastadoras para nós. Qual é a razão inicial para isso? Trata-se de um evento que chamamos de transbordamento [spillover]: quando o vírus passa de um animal para o seu primeiro hospedeiro humano. Isso acontece em áreas com grande degradação ambiental. Ambientes ricos em diversidade biológica, com muitos tipos de plantas, animais, fungos, bactérias, são também lugares que abrigam muitos vírus. Eles vivem ali, sem serem notados, ao longo dos milhões de anos sem causar qualquer doença, até que de repente passam para os humanos. E quando há degradação ambiental, significa que estamos interferindo naquele ecossistema. Estamos cortando árvores, construindo assentamentos, abrindo garimpos. (...)  Então há todos os tipos de perturbação na vida selvagem, na biodiversidade, que afinal contém uma grande variedade de vírus. Quando realizamos estes tipos de interferências, estamos convidando vírus para que se tornem nossos vírus, para que eles pulem para dentro de nós. Para nós, é uma situação miserável, é uma pandemia, é a morte. Mas para eles é sucesso! E acontece por conta da perturbação ambiental, a degradação ambiental de lugares que naturalmente abrigam muitos e muitos vírus.” (citado https://leonardoboff.org/2020/04/03/alerta-de-um-especialista-em-virus-e-nossa-relacao-para-com-a-natureza-david-quammen/)

Os vírus, portanto, não são inimigos de ninguém. Todas as metáforas de guerra que têm sido empregadas por governos e autoridades públicas são desastrosas e dificultam nossa compreensão da dinâmica complexa que a realidade do Coronavirus nos revela. Nós não estamos “sendo atacados por um inimigo invisível.” Estamos vivendo há décadas em desequilíbrio com as outras espécies que co-habitam o planeta; estamos devastando ecossistemas; emitindo uma quantidade imensa de gases de efeitos estufa; aquecendo a atmosfera e os oceanos; perfurando as entranhas da terra para extrair minérios e óleos; enchendo de venenos e agrotóxicos todos os biomas; desmatando em proporções inauditas; devastando a Amazônia de tal forma que o risco de destruição da floresta é eminente, com conseqüências para todo o planeta. Tudo isto, ainda mais intensamente no século XXI, mesmo depois de todos os xamãs, os povos indígenas, as comunidades tradicionais, os cientistas e o Papa terem dado alertas, avisos e denunciado que estamos devastando as condições para a vida no planeta. Todos estes são efeitos ao mesmo tempo sociais e “naturais” das ações de grupos humanos, poderosos, sobre o Planeta Terra. Não há vingança de Deus, não há intencionalidade perversa do vírus. Existem conseqüências sistêmicas de atos e de escolhas conscientes e racionais. Por isto, a Laudato Si é clara ao afirmar que não vivemos duas crises separadas, uma ambiental e outra social, mas “uma complexa crise socioambiental”. (§139)

A pandemia, portanto, ao ser parte de um processo mais amplo, vinculado a atitude de grupos humanos em relação a outros humanos e ao planeta, acontece em uma teia densa e complexa de relações socioambientais, intensificando os riscos de “caos sistêmico” ou o que os ambientalistas têm chamado de “tempestade perfeita”. A intrínseca articulação de processos que víamos como distintos e separados, ou seja, a conexão entre a História Humana e a vida do planeta, o Sistema Terra, é uma das ideias centrais da Encíclica: “tudo está intimamente interligado”. A Terra não é um cenário inerte, dócil e disponível para ser explorada, subordinada, dominada, comprada e vendida. Não! A Terra, “mãe e irmã”,  é matriz da Vida e é Vida. Organismo vivo e vivente. Embora tenhamos nos “esquecido”, é urgente relembrar que “nós mesmos somos terra (cf. Gn 2, 7). O nosso corpo é constituído pelos elementos do planeta; o seu ar permite-nos respirar, e a sua água vivifica-nos e restaura-nos.” (LS §2).

Por isto, na Praça São Pedro vazia, o Papa indagou com profundidade: “como podemos estar saudáveis em um planeta doente?” (http://w2.vatican.va/content/francesco/pt/homilies/2020/documents/papa-francesco_20200327_omelia-epidemia.html). É vital, portanto, que superemos a visão clássica da Modernidade, o “mito da dignidade exclusiva da natureza humana” (Levi Strauss. Antropologia Estrutural dois. São Paulo: Cosac Naify.2013:53).  Na Encíclica, o Papa com coragem reconhece a responsabilidade cristã para o fomento deste mito, ao sustentar um “antropocentrismo despótico” (LS§68, entre outros), baseado em “dualismos combalidos” (LS§98). Mas afirma a urgência de novas hermenêuticas, que nos ajudem a reconstruir os laços da “estupenda comunhão universal. O crente contempla o mundo, não como alguém que está fora dele, mas dentro, reconhecendo os laços com que o Pai nos uniu a todos os seres.” (LS§190)

Como parte constitutiva desta “complexa crise”, uma doença que se espalha globalmente evidencia a brutalidade das desigualdades estruturais, ampliadas nas últimas décadas. A situação é tão séria que um Editorial do Financial Times, jornal britânico insuspeito de vínculos com as forças populares, reconheceu em 3 de abril:

“Os isolamentos econômicos estão impondo o maior custo àqueles que já se encontram em pior situação. Durante a noite, perderam-se milhões de empregos e de meios de subsistência nos setores da hotelaria, do lazer e correlatos, enquanto os trabalhadores intelectuais mais bem pagos enfrentam freqüentemente apenas o incômodo de trabalhar a partir de casa. Pior ainda, os trabalhadores com baixos salários que ainda podem trabalhar estão freqüentemente arriscando a vida - como prestadores de cuidados e trabalhadores de apoio à saúde, mas também como empilhadores de prateleiras, motoristas de entregas e faxineiros.” (https://www.ft.com/content/7eff769a-74dd-11ea-95fe-fcd274e920ca)

As conseqüências deste período de “quarentena” da economia capitalista, no entanto, não afetarão apenas os mais pobres, embora eles sejam vítimas sacrificais. A nova ordem econômica certamente será marcada por uma disputa bélica brutal por hegemonia e pelos chamados “recursos naturais” entre China e Estada Unidos. Os alinhamentos dos governos de extrema direita da América Latina aos interesses americanos, do qual o Brasil é o exemplo mais dramático e extremo, indicam o aumento dos riscos de guerra e militarização no pós-pandemia. Olhemos com atenção para o que acontece a nossos vizinhos venezuelanos.

Portanto, o fracasso do neoliberalismo – evidente neste momento – pode engendrar um tipo ainda mais letal de capitalismo. E assim será se deixarmos por conta dos donos do mundo o cuidado do futuro. Como nos alerta o Papa: “será realista esperar que quem está obcecado com a maximização dos lucros se detenha a considerar os efeitos ambientais que deixará às próximas gerações?” (LS§190)

II. Esperançar...

Mas, com todas estas notícias péssimas – que ainda poderiam ser multiplicadas - como não desanimar? Acho que o fator que nos inspira a fortalecer a teimosa resistência dos pequenos e a rebeldia apocalíptica milenar é que parou/desacelerou a ação/destruição do “moinho satânico” da produção/circulação da economia mundo, a “economia de Mercado”, ao menos por um pequeno momento. Uma efêmera quarentena. Mas parou. Desacelerou. Isto sim era inimaginável!  E o inimaginável aconteceu: fábricas fecharam, estradas ficaram vazias, as emissões de gases de efeito estufa diminuíram, governos de direita falam de programas de renda mínima e da importância da saúde pública.

Não acho que uma crise da dimensão que atravessamos nesta noite escura, com milhares de mortos, possa ser entendida como “oportunidade”. Não acho que temos direito à inocência. Mas temos que disputar o futuro, ampliar a solidariedade e ousar imaginar um mundo que não seja governado pela máquina de Manon, o “deus dinheiro”. E temos que sonhar já, imaginar agora, nesta breve quarentena em que o inimaginável aconteceu. Se é verdade, por um lado, que os governos travam uma luta egoísta por respiradores e máscaras, revelando a face mais cruel da humanidade, por outro vemos infinitas iniciativas espontâneas de solidariedade em todas as cidades afetadas pela pandemia, pessoas que arriscam a vida para ajudar, apoiar, socorrer. Foi assim sempre, em todos os desastres e catástrofes. Eles liberam uma tremenda energia solidária, aquele sentido humano de pertença, empatia, compaixão e amizade que séculos de capitalismo não foram capazes de dizimar, por mais que o individualismo seja cultuado, imposto, ensinado. Resta ali, a brasa incandescente do amor que, muito rapidamente pode ser apagada.  Mas é dela que temos que nos valer para imaginar e disputar outros futuros possíveis. Mundos não distópicos.

Assim, acho que podemos caminhar, peregrinos, inspirados pela Laudato Sí, em algumas veredas que se combinam:

1.   Ampliar nossa leitura crítica da realidade que vivemos. Aprofundar e complexificar nosso olhar. Na Encíclica o Papa dá exemplo de imensa capacidade de diálogo, que reaproxima ciência e fé; saber popular e saber erudito; prosa e poesia. Precisamos construir uma compreensão complexa e socioambiental em cada um dos nossos lugares. Com nos diz a Encíclica: “é necessário recorrer (...) às diversas riquezas culturais dos povos, à arte e à poesia, à vida interior e à espiritualidade. Se quisermos, de verdade, construir uma ecologia que nos permita reparar tudo o que temos destruído então nenhum ramo das ciências e nenhuma forma de sabedoria pode ser transcurada, nem sequer a sabedoria religiosa com a sua linguagem própria.” (LS§63). O mal é terrível e, em geral, temos a tentação de desviar o olhar. De deixar de lado. De pensar que somos fracos e pequenos e não podemos nada fazer. Mas precisamos da coragem das mulheres no Calvário para olhar e olhar bem fundo.

2. Fortalecer e ampliar todas as comunidades eclesiais de base, todos os grupos de solidariedade, de vizinhança, de proximidade. Eles serão essenciais não apenas durante a pandemia para ajudar a cuidar dos doentes, alimentar os que têm fome, socorrer as mulheres e crianças vítimas de violência doméstica e acompanhar os solitários, para rezar com e pelos que não tem quem reze por e com eles. Os grupos de solidariedade serão fundamentais na situação de empobrecimento e desemprego que virá já, já. Ninguém deveria ficar sozinho agora! Em casa sim, sempre que possível. Abandonado, não! A Encíclica nos fala da relevância das relações de proximidade, uma vez que a construção de alternativas ao mundo dominado pelo “interesses do Mercado”, “requer constantemente o protagonismo dos atores sociais locais a partir da sua própria cultura.” (LS§144)

3.    Tanto quanto possível acompanhar as políticas públicas, as disputas entre os governos, as ações do presidente, dos governadores: denunciar, bater panela, exercer e inventar novas formas de vigilância cidadã. Mesmo sendo difícil, não podemos deixar as esferas públicas apenas para os psicopatas e perversos. Prestar atenção e denunciar o que acontece nos espaços mais vulneráveis à ação predatória do Estado: os desmatamentos, a ação das mineradoras e dos garimpeiros. Afirma a Encíclica, reconhecendo esta dificuldade e urgência: “A grandeza política mostra-se quando, em momentos difíceis, se trabalha com base em grandes princípios e pensando no bem comum à longo prazo. O poder político tem muita dificuldade em assumir este dever num projeto de nação.” (LS§178)

4.   O que menos temos feito e que é essencial agora - já que sabemos que não existe mais o normal que deixamos antes da pandemia - é imaginar outro mundo, melhor! Um mundo que queremos construir. Viveremos – querendo ou não – um “novo normal”. Com riscos socioambientais crescentes. Uma Terra mais afetada, mais quente, mais hostil e mais militarizada. Mas o futuro está em disputa. Ainda! A Encíclica, ao se dispor a ouvir de perto o “clamor da Terra e dos pobres”, estimula uma imaginação e uma espiritualidade abertas ao sopro do Espírito, em seu sentido mais encarnado e comprometido. Como disse o Papa recentemente, “Deus ama o mundo mais do que qualquer um de nós”! A inspiração e a confiança neste Amor que inunda a Criação, que está presente em todas as criaturas, que liga humanos e não humanos, é a força gentil e frágil que pode nos salvar. Salvar não da ira de Deus, mas, “sobretudo proteger o homem da destruição de si mesmo” (LS§79)! “O universo desenvolve-se em Deus, que o preenche completamente. E, portanto, há um mistério a contemplar numa folha, numa vereda, no orvalho, no rosto do pobre.” (LS§233). Esta é uma sabedoria e uma espiritualidade profunda e antiguíssima, muitas vezes soterrada em nossas Igrejas. Santos, santas e místicos de todas as religiões cantaram este amor a toda a Criação. Dom Helder nos lembrava, “nós vivemos em Deus”! A espiritualidade dos povos ancestrais, dos indígenas e dos afrodescendentes tem tanto, tanto a nos ensinar! Os livros apocalípticos, já no Antigo Testamento, nos inspiram a imaginar e a construir a comunhão entre humanos e não-humanos, o Reino de Deus: um mundo de paz. “Que a terra bendiga ao Senhor” (Dn 3, 74), que todos os seres criados, céus, montanhas, rios, orvalho, chuva, sereno e todos nós, de “corações puros e humildes” (Dn 3,87), bendigamos em uníssono ao Senhor. E que vivamos em harmonia!

Há alguns dias um filósofo francês propôs um “exercício” que pode estimular nossa rebeldia. Deixo aqui como proposta para nós!

“Aproveitemos a suspensão forçada da maior parte das atividades para fazer um inventário daquelas que gostaríamos que não fossem retomadas e daquelas que, pelo contrário, gostaríamos que fossem ampliadas. Responda às seguintes perguntas, primeiro individualmente e depois coletivamente:

1ª pergunta: Quais as atividades agora suspensas que você gostaria de que não fossem retomadas?
2ª pergunta: Descreva por que essa atividade lhe parece prejudicial / supérflua / perigosa / sem sentido e de que forma o seu desaparecimento / suspensão / substituição tornaria outras atividades que você prefere mais fáceis / pertinentes. (Faça um parágrafo separado para cada uma das respostas listadas na pergunta 1).
3ª pergunta: Que medidas você sugere para facilitar a transição para outras atividades daqueles trabalhadores /empregados / agentes / empresários que não poderão mais continuar nas atividades que você está suprimindo?
4ª pergunta: Quais as atividades agora suspensas que você gostaria que fossem ampliadas / retomadas ou mesmo criadas a partir do zero?
5ª pergunta: Descreva por que essa atividade lhe parece positiva e como ela torna outras atividades que você prefere mais fáceis / harmoniosas / pertinentes e ajuda a combater aquelas que você considera desfavoráveis. (Faça um parágrafo separado para cada uma das respostas listadas na pergunta 4).
6ª pergunta: Que medidas você sugere para ajudar os trabalhadores / empregados / agentes / empresários a adquirir as capacidades / meios / receitas / instrumentos para retomar / desenvolver / criar esta atividade?”(Bruno Latour, http://www.bruno-latour.fr/sites/default/files/downloads/P-202-AOC-03-20-PORTUGAIS_2.pdf)

Ousemos, com gentileza e amor, sonhar e disputar com o poder do capital o futuro pós-padêmico! Nós não estamos sós. “Ele Ressuscitou! E vai à vossa frente.” (Mc16, 6-7)

*Moema Miranda é Antropóloga pelo Programa de Pós Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional / UFRJ (PPGAS/UFRJ) é assessora da Comissão Especial para a Ecologia Integrale Mineração da CNBB da CNBB, e da da Rede Eclesial Pan-Amazônica/REPAM-Brasil; secretária exevutiva da Rede Latinoamericana de Igrejas e Mineraçãç pertence a Ordem Francisca Secularç membro da equipe executiva do Serviço Interfranciscano de Justiça, Paz e Ecologia/SINFRAJUPE. Participou, como auditora, do Sinodo da Amazônia.
Fonte: CNLB


domingo, 12 de abril de 2020

Nesta Páscoa Papa Francisco aos movimentos populares: "Continuem sua luta e cuidem-se como irmãos"


Aos irmãos e irmãs dos movimentos e organizações populares. 

Queridos amigos


Lembro-me com frequência de nossas reuniões: duas no Vaticano e uma em Santa Cruz de la Sierra e confesso que essa "memória" me faz bem, me aproxima de vocês, me faz repensar tantos diálogos durante essas reuniões e em tantas ilusões que nasceram e cresceram lá e muitas delas se tornaram realidade. Agora, no meio dessa pandemia, lembro-me de uma maneira especial e quero estar perto de vocês.

Nestes dias de tanta angústia e dificuldade, muitos se referiram à pandemia que sofremos com metáforas bélicas. Se a luta contra a covid-19 é uma guerra, vocês são um verdadeiro exército invisível lutando nas perigosas trincheiras. Um exército que conta apenas com as armas da solidariedade, da esperança e do sentido de comunidade que renasce nestes dias nos quais ninguém se salva sozinho. Vocês são, para mim, como lhes disse em nossos encontros, verdadeiros poetas sociais que, a partir das periferias esquecidas, criam soluções dignas para os problemas mais urgentes dos excluídos

Sei que muitas vezes vocês não são reconhecidos como deveriam porque, para este sistema, são verdadeiramente invisíveis. As soluções de mercado não chegam às periferias e a presença protetora do Estado é escassa. Tampouco vocês tem os recursos para realizar suas funções. Vocês são vistos com suspeita por superar a mera filantropia através da organização comunitária ou por reivindicar seus direitos, ao invés  de ficarem resignados à espera de ver se alguma migalha cai daqueles que detêm o poder econômico. Muitas vezes, amargam a raiva e a impotência ao ver que as desigualdades persistem mesmo quando terminam todas as desculpas para sustentar privilégios . No entanto, vocês não se escondem na denúncia: arregaçam as mangas e continuam trabalhando pelas suas famílias, seus bairros, pelo bem comum. Esta sua atitude me ajuda, questiona e ensina muito.

Penso nas pessoas, sobretudo nas mulheres, que multiplicam o pão nos restaurantes comunitários, cozinhando com duas cebolas e um pacote de arroz um delicioso refogado para centenas de crianças; penso nos doentes, penso nos idosos. Nunca aparecem nos grandes meios de comunicação. Tampouco aparecem os camponeses e agricultores familiares que seguem lavrando para produzir alimentos saudáveis sem destruir a natureza, sem monopolizar ou negociar com a necessidade do povo. Quero que vocês saibam que nosso Pai Celestial olha por vocês, os valoriza, reconhece e os fortalece em sua escolha.

Quão difícil é ficar em casa para quem mora em uma pequena casa precária ou para quem não tem teto diretamente. Quão difícil é para migrantes, pessoas privadas de liberdade ou para aqueles que realizam um processo de cura para vícios. Vocês estão lá, colocando seu corpo ao lado deles, para tornar as coisas menos difíceis, menos dolorosas. Parabenizo e agradeço do fundo do meu coração. Espero que os governos entendam que os paradigmas tecnocráticos (sejam centrados no estado, centrados no mercado) não são suficientes para enfrentar esta crise ou outros problemas importantes da humanidade. Agora, mais do que nunca, são as pessoas, as comunidades, os povos que devem estar no centro, unidos para curar, cuidar, compartilhar.

Sei que foram excluídos dos benefícios da globalização. Não desfrutam daqueles prazeres que anestesiam tantas consciências. Apesar disso, sofrem as desvantagens. Os males que nos afligem os colpeia duas vezes. Muitos de vocês vivem o dia a dia sem nenhum tipo de garantias legais para protegê-los. Os vendedores ambulantes, os recicladores, os comerciantes, os pequenos agricultores, os construtores, as costureiras, os que realizam diferentes tarefas de cuidado. Vocês, trabalhadores da economia informal, independente ou popular, não têm um  salário estável para resistir a este momento... e as quarentenas se tornam insuportáveis. Talvez este seja o momento de pensar em um salário universal que reconheça e dê dignidade às nobres e insubstituíveis tarefas que desempenham; capazes de garantir e realizar uma realidade tão humana e tão cristã: que nenhum trabalhador fique desprovido de direitos

Também gostaria de convidá-lo a pensar no "depois", porque esta tempestade vai acabar e suas sérias conseqüências já estão sendo sentidas. Você não é improvisado, tem a cultura, a metodologia, mas principalmente a sabedoria que é amassada com o fermento para sentir a dor do outro como sua. Quero que pensemos no projeto de desenvolvimento humano integral que almejamos, centrado no protagonismo dos Povos em toda a sua diversidade e o acesso universal a esses três T que vocês defendem: terra, teto e trabalho. Espero que este momento de perigo nos tire do piloto automático, agite nossas consciências adormecidas e permita uma transformação humanista e ecológica que coloque fim à idolatria do dinheiro e coloque a dignidade e a vida no centro. Nossa civilização, tão competitiva e individualista, com suas taxas frenéticas de produção e consumo, seus luxos excessivos e lucros excessivos para poucos, precisa reduzir a marcha, se repensar, se regenerar. Vocês são construtores indispensáveis ​​dessa mudança urgente; aliás, você tem uma voz autorizada para testemunhar que isso é possível. Vocês conhecem crises e privações ... que com modéstia, dignidade, comprometimento, esforço e solidariedade, conseguem se transformar em uma promessa de vida para suas famílias e comunidades.

Continuem com sua luta e cuidem-se como irmãos. Rezo por vocês, rezo com vocês e quero pedir ao nosso Deus Pai que os abençoe, cubra-os com o seu amor e o defenda no caminho, dando-lhes a força que nos mantêm em pé e não decepiciona: a esperança. Por favor, rezem por mim, que também necessito.

Fraternalmente,

Francisco


Ciudade do Vaticano, 12 de abril de 2020, Domingo de Páscoa.
FONTE: VATICAN NEWS 



quinta-feira, 2 de abril de 2020

Mineração não é atividade essencial, a vida do trabalhador sim! 

Essa não é a primeira tentativa do poder Executivo em enquadrar setores não essenciais como tal, no intuito de manter atividades econômicas específicas funcionando e cujo objetivo político consiste em ampliar a sua base empresarial de apoio, como no Decreto 10.292/2020, o qual enquadra Igrejas e casas Lotéricas como serviços essenciais. Esse decreto foi derrubado por uma Ação Civil Pública movida pelo Ministério Público Federal, que alegou que a Lei 7.783/89 já definia quais seriam as atividades essenciais. Do mesmo modo, compreende-se como inconstitucional a referida Portaria que confere caráter de essencialidade à pesquisa, lavra, beneficiamento e escoamento de minérios. Pois, como o MP já definiu na ACP, “é nítido que o decreto coloca em risco a eficácia das medidas de isolamento e achatamento da curva de casos da Covid-19, que são fatos notórios”.

Outro elemento importante para atentarmos sobre os riscos da Portaria do MME, é o agravamento abrupto dos casos de internações, lembrando que a atividade mineral exige inúmeros atendimentos médicos por conta das doenças respiratórias e contaminações de trabalhadores e moradores nos territórios. Segundo os dados disponibilizados pelo Centro de Tecnologia Mineral (CETEM) de 2014, órgão vinculado ao Ministério da Ciência e Tecnologia, foram analisados 105 casos de conflito na mineração, possuindo uma linha de investigação relacionada a contaminação por metais pesados, onde “o mais comum nos estudos empreendidos é a contaminação por metais pesados presentes na composição mineralógica (35); seguida de substâncias utilizadas no processo de mineração, como cianeto e mercúrio (23); substâncias perigosas, intrínsecas ou naturais, como o asbesto (11); e metais radioativos (9)” e ainda 60 conflitos relacionados a doenças causadas pela atividade, tornando assim, os trabalhadores e a população das comunidades do entorno, mais suscetíveis a desenvolverem os sintomas mais graves da doença, em virtude de problemas respiratórios e outros pré-existentes relacionados a atividade.

Brasília, 31 de março de 2020.
Comitê Nacional em Defesa dos Território frente à Mineração