sexta-feira, 5 de novembro de 2021

Seis anos de impunidade - Crime da SAMARCO

Na luta de resistência contra os impactos sócio ambientais e violações de direitos humanos, provocados pelo setor minerário, foram forjados alguns conceitos. Creio que refletindo sobre eles podemos compreender melhor uma lógica, que eu atribuo perversa, do negócio chamado mineração. Dentre esses conceitos, hoje ao mantermos viva a memória de 6 anos do crime da Vale e BHP (Samarco), em Mariana, quero me referir ao que chamamos de Zonas de Sacrifício. Esse é um conceito, forjado, nos Estados Unidos, durante o período da Guerra Fria, para justificar os efeitos na população da atividade nuclear (chuva radioativa), mais tarde na década de 70 foi utilizado para justificar os impactos da extração de carvão, naquele país (Huntington Smith, H 1975)*.

Esses 6 anos de crime continuado, criam na população em geral, um sentimento, uma lógica, de que vivemos em geografias desiguais. Ou seja, alguns territórios e as suas populações pagam o preço do “desenvolvimento”. Isso, como se fosse um tributo ao modelo de sociedade imposto, a partir da degradação ambiental de um território e de seus habitantes. Com isso se busca naturalizar o sofrimento injusto e criminoso, para dar conta da dinâmica política, social e econômica reconfigurando o território como zona de sacrifício. 

Apesar das enormes dimensões e da profunda gravidade do crime da SAMARCO, o sacrifício humano e ambiental se torna invisível.  São reinterpretadas, nos discursos e ações de poder, que acabam por naturaliza-los e transformam o crime, em um sacrifício a ser vivido. Cabe à população, então, se imolar, para o bem do negócio. Não vamos aqui refletir, como essa trama se impõem no imaginário coletivo. Contudo, seria bom refletir, como a dimensão “sacrifício”, numa perspectiva religiosa, foi historicamente utilizada e vivida, como processo de domesticação, na história e cultura brasileira. E pior, tanto no caso do crime em Mariana e Bacia do Doce, quanto no caso do crime em Brumadinho e Bacia do Paraopeba, existe uma retórica que a priori nega ou minimiza a contaminação e seus impactos na vida das pessoas. Há seis anos se busca silenciar, impor um sofrimento silenciado, que denota uma trama de poder e cumplicidade entre governo e empresa, avalizada pela Justiça, parte da ciência e da mídia.

Na intervenção das instituições do Estado, se impôs a força do modelo econômico extrativista, extensivo e intensivo. Essas instituições aceitaram desde o inicio que a SAMARCO (VALE /BHP) controlasse a cena do crime, que ela própria cometeu, e até os dias de hoje é ela que tem o controle total. Esse modelo de controle, se repete na reincidência do mesmo tipo de crime, pela VALE, em Brumadinho.

Essa submissão das instituições do Estado à força do modelo econômico extrativista, extensivo e intensivo, pode ainda ser constatada quando essas instituições, submetem o processo de reparação do crime, à vontade daquele que o cometeu. Isso é imoral e ao mesmo tempo se trata de perpetrar um outro crime. As instituições do Estado deveriam, sim, ter assumido um regime que colocasse a ênfase na responsabilidade legal das empresas, em relação ao crime, às violações de direitos por elas cometidas. Deveriam, ter sido criados instrumentos que dessem poder e que permitissem às vítimas, exigirem uma reparação, incluindo compensação, restituição e reabilitação dos danos sofridos por elas e pela natureza. A reparação não pode depender dos negócios e oportunidades das empresas em causa.

Cabe aqui uma observação: As Assessorias Técnicas Independentes, hoje bombardeadas, pelo próprio sistema que as criou.  

Os inúmeros acordos permitiram uma verdadeira negociação no varejo, das diversas violações de direitos humanos, sociais, econômicos e ambientais, fragmentando as comunidades atingidas e enfraquecendo a força coletiva.

Os que defendem essa verdadeira fabrica de acordos, que foi instaurada, usam o argumento de que se trata de conciliação, uma forma de solução mais breve do que a lentidão dos tribunais. No entanto, a eficácia da lei não se baseia somente nos processos judiciais, mas também no poder de incentivar uma cultura de cumprimento e de combate à impunidade. E a impunidade, tem sido a marca registrada, desse crime e de outros crimes do setor minerário.

Soma-se a isso a baixa credibilidade no cumprimento de acordos. O que nos leva a duvidar. No caso de um Acordo de Repactuação assinado pelos mesmos atores que celebraram o TTAC (Termo de Transação e Ajustamento de Conduta) e os outros complementares como o TAP (Termo de Ajustamento Preliminar), ATAP (Aditivo ao Termo de Ajustamento Preliminar), e TAC-Governança e não os cumpriram? O Sistema de Justiça está pactuando um processo de injustiça que não abre espaço a uma efetiva participação dos atingidos e sociedade organizada. A violação de direitos se repete. 

Assim salta aos olhos uma arquitetura da impunidade do crime causado pela Samarco e que continua sendo colocada em prática pelas grandes empresas sob conivência da justiça.

Outro exemplo são os grandes acordos, como o que foi firmado pelo Estado de Minas Gerais, com o apoio do MPMG e da DPE/MG que sequer foi construído com a participação efetiva das atingidas e atingidos. Impõe-se assim, a perpetuação da violência realizada por meio de um arremedo de acordo que legitima as práticas criminosas e desresponsabiliza o governo. Sem contar o escárnio da propaganda, que induz a pensar a reparação de um crime, como uma benesse a ser distribuída pelo Estado, em seu território.  Como um troféu de astúcia política, que o executivo teria arrancado do criminoso, ou parceiro, num acordo a portas fechadas, anulando qualquer sentido e ideia de um procedimento de justiça e de obrigação do criminoso. Isso sem falar na disputa eleitoreira de quem seria o “pai” de tal astúcia política. Tudo isso levado ao marketing, com expressões como “Acordo da Vale”, “Recursos da Vale”, numa oficial “Fake News”, propagandeado também pela empresa. As empresas responsáveis pelo crime não podem decidir sozinhas sobre a recuperação dos danos difusos e coletivos, além da indenização das famílias, sendo imprescindível a participação direta das vítimas, visto que o caso é decisivo para a reconstrução de suas vidas e do meio ambiente.

O sistema de governança estabelecido e que se consolida com as formas de encaminhamento no pós-crime da Vale em Brumadinho, e aos poucos se estende como modelo, é o de salvaguarda a governança corporativa. Esse modelo sugere que o crime-desastre e os eventos seguintes estão sendo interpretados com uma sequência de ações visando a recuperação de legitimidade da empresa.

Por outro lado, diversos acordos são sistematicamente ignorados, a indenização, reparação e compensação dependem de vontade das empresas. O poder corporativo se fortaleceu, capturando o Estado, o que se constata no cotidiano dos processos de licenciamento de novas explorações minerárias e no avanço do poder das empresas sobre territórios, onde risco real ou não de rompimento de barragem, são anunciados. Aqui temos um outro termo, o da Captura Corporativa se impondo na lógica de governança. 

Aqui é importante refletirmos o cotidiano das relações empresa e Estado, para além dos crimes de rompimento de barragens. As séries de negligências, burocracias e desrespeito aos direitos humanos e ao meio ambiente, dessas corporações, não fazem do caso SAMARCO, uma exceção. Mas são sim características do modelo de mineração e das vulnerabilidades de poder das instituições do Estado.  Vivemos um cotidiano marcado pela impunidade, resultado da captura corporativa do Estado. Essa captura se dá por vários meios. Desde os mais comentados, o financiamento eleitoral, como por exemplo, a bancada da lama (Congresso e Assembleias); ou por meio chamada "porta giratória", um movimento de pessoal trocando funções, hoje como legisladores e reguladores, funcionários e servidores públicos, e amanhã como quadros das mineradoras que deveriam cumprir essa mesma legislação e regulamentação e vice e versa; ou ainda através de trocas de vantagens legais e ilegais. A mais comum e sutil de todas é aquela que se dá quando uma empresa chega numa região. Aí o Estado enxerga e atua em chave de investimento, em detrimento da população e do meio ambiente, e a encara a empresa como parceira no desenvolvimento.  A partir desse momento é o Estado quem a defende. Basta ver o papel do Estado em todo o processo de licenciamento do empreendimento, e de busca de flexibilização desses processos, configurando uma outra forma de captura corporativa. Quando não, chegando à corrupção, em diversas instituições do Estado. Soma-se a isso a narrativa das mineradoras, como a única chance de promoção de riqueza. A ideia que se tem, é que antes da mineradora, não havia vida no território.

Somam-se à captura corporativa as táticas agressivas de publicidade das empresas que gastam mais dinheiro na divulgação de ações fictícias, do que no reparo real de seus impactos. Importante é perceber que essas táticas acontecem onde temos rompimento de barragem ou não. Bem como, os estímulos a disputas e intrigas no seio das comunidades e entre pessoas atingidas, enquanto elas se mantêm livres e impunes nos territórios para negar direitos. Tais ações não são punidas, são protegidas.

Concluo lembrando que nenhum Diretor Executivo foi punido, centenas de milhares de vítimas encontram-se sem reparação. Acordos 

A VALE, BHP (SAMARCO) continua com seu cinismo, vivendo na impunidade e com um verdadeiro escárnio comemorando a cada ano seus lucros, em cima de vidas humanas e do meio ambiente. Aliás, é para isso que existem as mineradoras: LUCRO A QUALQUER CUSTO.

Frei Rodrigo de Castro Amédée Péret, ofm

*Huntington Smith, H. 1975. “The Wringing of the West”. The Washington Post. Washington, DC:–1–B4.

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